Flertei com a morte dia 21 de agosto de 1994, há quase 30 anos. Estava voltando de uma viagem de carro, acompanhada de um amigo e do Paulo, meu namorado à época. Saímos de Paraty, Rio de Janeiro, em direção à serra de Taubaté, São Paulo. Estava triste, meu relacionamento não andava bem. Naquele dia, pela manhã, caminhei pela praia sozinha e pedi a Deus que mudasse o rumo da minha vida. Cerca de 12 horas depois o pedido foi atendido.
Correndo mais que o permitido e alcoolizado, Paulo acelerava o carro na tentativa de me deixar nervosa e me amedrontar, um comportamento violento e comum entre homens que fazem do volante uma arma de violência psicológica contra a mulher. Foi dessa forma que ele perdeu o controle da direção em um trecho da serra chamado não por acaso de “curva da morte”. Despencamos 15 metros barranco abaixo e durante uma das capotadas, quebrei o pescoço. O resultado da imprudência de meu namorado me tornou uma pessoa tetraplégica.
Histórias como a minha, infelizmente, não são raras. Ao contrário, o Brasil ocupa posição de liderança em rankings que não nos orgulham. Segundo a Organização Mundial de Saúde, nosso país é o terceiro do mundo com mais mortes no trânsito.
Em 2020, o Conselho Federal de Medicina mostrou que, por hora, 20 pessoas davam entrada em hospitais da rede pública de saúde com ferimentos graves decorrentes de acidentes de trânsito. Segundo o mesmo levantamento, nos últimos dez anos, acidentes deixaram mais de 1 milhão e 600 mil brasileiros com sequelas irreversíveis – como a minha – a um custo de mais de R$3 bilhões ao SUS.
Entre as vítimas, 60% têm idade entre 15 e 39 anos, faixa etária em que as pessoas estão mais produtivas no mercado de trabalho. Falamos de cidadãos que deixam de trabalhar e passam a depender do Estado e de serviços de reabilitação. E posso dizer com propriedade que o Brasil não consegue atender toda a demanda.
Pensando nesse cenário alarmante, o Senado aprovou recentemente o projeto de lei PLS 98/2015, que exige a avaliação psicológica periódica de todos os motoristas a partir da primeira habilitação. O texto foi aprovado em caráter terminativo pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e agora segue para análise da Câmara dos Deputados.
A proposição aprovada pretende modificar o Código de Trânsito Brasileiro para determinar que a avaliação psicológica, hoje exigida uma única vez, apenas na primeira prova de habilitação, seja realizada periodicamente, a cada renovação. A exigência caberá também para o exercício de atividade remunerada na condução de veículos.
Além de combater o alto número de mortes que poderiam ser evitadas, a medida também contribuirá para prevenir inúmeras deficiências causadas por sequelas de lesões medulares, amputação de membros, traumatismo crânioencefálico e outros traumas, inclusive os de ordem psicológica.
Quando falamos de deficiência, além do impacto pessoal, há o custo da deficiência em si, que é muito alto. Uma pessoa com lesão medular, por exemplo, paga para ter o direito de exercer funções fisiológicas. Paga-se para fazer xixi e cocô. Isso porque depende de fralda ou de sonda. Sem contar que muitas vezes essa pessoa dependerá de outra para que consiga realizar as mais simples e rotineiras atividades.
Eu mesma só cheguei ao Senado e a todos os cargos que ocupei porque conto com uma cuidadora, um privilégio de poucos em nosso país e que há muito tempo luto para se tornar um direito de todos. Ou seja, o Brasil não tem estrutura para atender com dignidade as vítimas do trânsito que adquirem uma deficiência.
Como psicóloga, sei que a saúde mental não data de validade. São inúmeros os fatores que nos tiram do eixo e podem nos desequilibrar, gerar atitudes violentas e imprudentes. De um momento para o outro a capacidade de controle do motorista pode mudar, colocando em risco a própria vida e a de terceiros. O trânsito, por si, é um fator de estresse potente.
Fato é que nunca precisamos tanto de lucidez e equilíbrio. É o momento de inspirar comportamentos mentalmente sadios. Por isso, repensar e trabalhar para aprimorar nosso trânsito é, acima de tudo, um ato de respeito à vida.